No dia 21 de março de 2015, há exatamente um ano, postei aqui no blog a primeira resenha de um livro nacional. Hoje, em singela homenagem a todos os títulos e autores que já passaram pelo Desenhando em Letras, posto um conto. Não um conto qualquer, mas um que foi composto com todos os títulos. Cliquem sobre eles para lerem a resenha. Acompanhem: — Venham, crianças. Venham ouvir os Contos de Som e Silêncio do vovô. — E foi desse modo que fui acordado pela minha mãe naquela tarde fria de inverno. Era certo que levantaria de imediato ao escutar que o vovô regressara de mais uma viagem e que contaria novas histórias, mas a Talita não pareceu muito contente; eu até já imaginava o porquê... — Mas o que aconteceu com as Histórias de Atréfora, vovô? — resmungou a minha irmã mais nova enquanto se assentava em um círculo malfeito que havíamos criado em torno do vovô. Ela era a única Entre Garotos, pois conosco ainda estavam os primos Brian e Breno. Era gêmeos. Idênticos. Minha mãe apenas nos deixou junto a ele e saiu para cumprir os seus afazeres domésticos. Vovô, o grande Magnum Juris, suspirou fundo, talvez a respiração estivesse mais fraca naquele momento devido ao avanço da idade. Eu já tinha notado o seu cansaço da última vez em que nos reunimos, mas o inverno parecia ter o castigado ainda mais. — Crianças, vocês serão Os Guardiões de todas as minhas narrativas. Atréfora acabou, finalmente descansou em um Mausoléu eterno: um livro! — disse ele. — O Nono e a Raposa Mestiça encontraram um lugar em Júbilo. E um novo ciclo se iniciou no mundo da criação; uma nova era, como queiram. E nessa era Som e Silêncio fazem barulhos simultâneos e se calam às vezes, somente quando as bocas param de gritar. — Talvez sejam os barulhos e os silêncios que compõem a Metamorfose da Vida, não é mesmo, vovô? — sugeriu Breno, ainda tímido. Eu nunca entendi o porquê de ele ser tão fechado na presença do vovô. Acho que o respeitava demais e, por isso, limitava as suas palavras. — Exatamente, são Coisas do Coração, entende? Ninguém consegue definir com exatidão como a metamorfose ocorre ao longo do fio que tecemos na vida, mas as suas palavras, sim, têm sentido — vovô sorriu. Era reconfortante vê-lo assim, feliz, depois de tudo o que aconteceu. A Boneca Fantasma. Foi o que disse ter visto no túmulo da vovó pouco depois de ela ter sido sepultada. Ainda recordo-me de como ele chegou apavorado aqui em casa e do quanto de suor pingava pelo assoalho formando uma linha torta que ia de um extremo a outro da sala. — Quando a Neve Cai costumo contar as histórias — explicou calmamente. — Mas ouvi no noticiário que não haverá neve este ano. Acho que devo voltar no ano que vem para que vocês possam se aterrorizar com os relatos das minhas aventuras. Ainda haverá A Marcha dos Javalis em fevereiro? — questionou mais para si do que para nós, ao mesmo tempo em que se levantava e ia de encontro à porta. — Isso é tão injusto, vovô — protestou Brian, se pondo de pé. — Volte e nos conte as suas aventuras. A neve pode não cair, mas O Príncipe Congelado ainda se mantém em gelo. Vovô se paralisou na entrada e deixou um sorriso um tanto macabro dominar o seu rosto. De uma só vez virou-se contra nós e riu diabolicamente. — Leon... — Não, eu sou Brian. Não tem Leon aqui — interrompeu o meu primo. — Leon disse certa vez que Ocultos estavam eles entre nós — continuou o vovô como se nunca tivesse sido interrompido e mantendo o sorriso sombrio na cara. — Ao todo são Dezesseis, segundo ele, mas O Clã dos Quatro Guerreiros desmente esse número. Engolimos em seco. Sabíamos aonde ele ia chegar com toda aquela conversa, e até as nossas espinhas resolveram congelar. Meu coração, se tivesse um pouco de coragem, partiria do meu corpo, faria uma teresa com as minhas tripas e escalaria o meu interior até conseguir a liberdade saindo pela minha boca. — De... deuses?! — gaguejou Talita. — Dezesseis deuses em busca de ferramentas inúteis? — As Ferramentas dos Deuses detêm mais de oitenta por cento do poder das divindades, é que dizem — ria vovô. — E, segundo também o que dizem, três de vocês nesta sala estão com algumas dessas ferramentas. Os deuses, mesmo com menos de vinte por cento do seu poder, podem vaporizar a todos com apenas um olhar. — Mas o que o clã de guerreiros tem a ver com tudo isso? — perguntei. — São guerreiros, não deuses — argumentei. — Era o que pensávamos, também, querido. Mas não. Eles são deuses. Os únicos de que temos notícia, mas já estão com as suas ferramentas. — O senhor acredita mesmo que possa haver mais deuses aqui na Terra? — Breno falou tão baixo que até hoje me pergunto como vovô conseguiu escutá-lo. O velho tinha muitos segredos, disso eu sabia. — Eu acredito em tudo, menos que A Morte Veste Roxo. Isso é, sim, um absurdo. O roxo cai tão bem em uma senhora de milhões de anos como O Medalhão Ígnis nas mãos de algum príncipe vingativo. — Esse não é um Relato Inspirado por Orelhas? — Talvez seja, Brian, talvez não — pareceu responder ele. — Faz diferença se A Rainha da Primavera se tornará A Herdeira de Ótavos um dia? São questões que de nada adianta indagar, pois todas as respostas para elas só o levarão para a estaca inicial: o grande abismo arredondado do número zero. Observei todos na sala pelo instante que me pareceu uma eternidade. Meus primos e a minha irmã mantinham expressões sérias, e o meu vô trazia um ar enigmático que até então jamais tinha visto, ou simplesmente visto e esquecido quando ainda era pequeno. O Pingente de Sangue, como eu chamava um amuleto dado por minha vó há tanto tempo que já não me lembro, ardeu como se uma entidade do Maldito Sertão o estivesse pondo no fogo do Inferno. Segurei-o com fúria e o joguei violentamente contra o chão. — Por que você fez isso, Guilherme? Foi um presente da sua avó — se surpreendeu vovô, ao pegar o amuleto caído no chão. — Desculpe, vovô, eu não sei o que deu nele. Começou a arder... — solucei. — Era como se, como se... — O Inferno explodisse em seu peito — interrompeu ele, assumindo na sequência uma expressão séria. — Sim... — balbuciei. — Como o senhor... — Escutem, as histórias ficarão para outra hora, crianças! — vovô andava em círculos enquanto falava. — A Caixa de Natasha foi aberta! — Caixa de Natasha?! — perguntaram em uníssono os gêmeos. — Quem é Natasha, vovô? — Talita se aproximou. — Nem eu sei ao certo, é uma habitante de Condão, aquele maldito e Desafiador mundo futurista além-mar, ela não pode cruzar os mares no La Viratta. Não deve! — Pela primeira vez, vi uma lágrima escorrer pelo rosto do vovô e cair sobre a sua jaqueta escura. Era estranha a visão, e eu fiquei preocupado. — A estranha lenda de Plátano e Bordo, a mesma que diz que uma mulher misteriosa apareceria aqui em Esquimolândia e deceparia a cabeça dos membros da família Basker — se apavorou Brian, enquanto tentava finalizar as palavras em um tom mais robótico do que o habitual. Um rangido na porta que dava acesso à cozinha chamou a nossa atenção; vimos mamãe entrar carregando uma bacia pequena. Suspiramos aliviados. — Nós somos a família Basker — concluiu Breno. Um baque poderoso no chão fez nossa atenção se voltar novamente na direção da cozinha. — E eu sou Natasha — consegui ouvir mamãe dizer vagamente. A última coisa de que me lembro foi de olhar para o chão e ver a cabeça do meu pai sair da bacia e rolar pelo aposento. Depois disso, só vi trevas. |
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